Justiça determinou supressão de conteúdo e até inclusão de novos documentos em relatório custodiado pelo Arquivo Nacional

Estimados colegas,

Publicamos na edição regular do Giro da Arquivo desta semana um novo caso de tentativa de censura em documentos custodiados em caráter permanente pelo Arquivo Nacional.

Desta feita, trata-se de uma decisão judicial resultante de ação interposta pela família do ex-governador do Paraná, Ney Braga, em 2015. O texto completo pode ser lido no Giro ou através deste link, mas alguns pontos merecem destaque: o primeiro, é que a história já data de mais de ano; o segundo, é que, além da decisão de suprimir trechos do relatório da Comissão Estadual da Verdade (deliberação que não se efetivou), desta vez o Judiciário impôs ao Arquivo Nacional a inserção de vários documentos (em ordem determinada pelo juiz) nos dossiês custodiados pelo AN (esta decisão foi acatada).

Ao que me consta, não há precedentes deste tipo no Brasil. Numa comparação “simplificadora” (para que tenhamos dimensão da gravidade do tema), é como se o Judiciário permitisse ao presidente da República inserir documentos de sua preferência no relatório final da CPI da COVID – tudo isso depois que o relatório já tivesse passado à custódia de instituição arquivística.

A decisão do juiz no caso analisado nesta semana baseou-se no direito de habeas data, ou no que chamamos de uma “livre interpretação” sobre este direito.

Tudo muito grave e estranho, pra dizer o mínimo.

Enfim, era isso.

Saudações arquivísticas, Chico Congo
https://medium.com/girodaarquivo/justi%C3%A7a-determinou-supress%C3%A3o-de-conte%C3%BAdo-e-at%C3%A9-inclus%C3%A3o-de-novos-documentos-em-relat%C3%B3rio-custodiado-bf7f5d1aa55d

Justiça determinou supressão de conteúdo e até inclusão de novos documentos em relatório custodiado pelo Arquivo Nacional

Publicado na edição #165 do Giro da Arquivo. Para receber a newsletter completa, assine!

Feb 8 · 3 min read

A decisão judicial sobre a “anonimização” das menções ao ex-coronel da PM pernambucana, Olinto de Sousa Ferraz, no relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), apurada pelo Giro da Arquivo na última semana, gerou repercussão e repúdio. Além da cobertura de veículos da grande imprensa, o caso levou à publicação de uma nota do Fórum Nacional de Ensino e Pesquisa em Arquivologia (FEPARQ), que manifestou “extrema preocupação” com o ocorrido.

Baseada em uma decisão judicial que despreza a legislação relativa aos arquivos, ao acesso à informação e aos próprios trabalhos da CNV, o apagamento do nome de Olinto de Sousa Ferraz gera preocupação pelo precedente aberto, mas talvez seja só mais um caso do tipo. Depois da publicação da última semana, o Giro da Arquivo apurou que outra decisão oriunda do Judiciário — desta vez de 2017 — determinou a adulteração de documentos custodiados em caráter permanente pelo AN. E o mais grave: a Justiça não apenas decidiu que a instituição deveria suprimir trechos de documentos, como também impôs a inclusão de novas páginas em relatório recolhido meses antes.

O caso envolve os documentos que mencionam Ney Braga (1917–2000), militar e político paranaense que exerceu diferentes cargos durante o período da ditadura. Em 2015, a família de Braga ingressou com uma ação judicial contra a União Federal e o Arquivo Nacional. Na causa, os familiares do político pediram a anexação e indexação de documentos no relatório final da Comissão Estadual da Verdade do Paraná Teresa Urban, recolhido ao AN.

Entre novembro de 2016 e junho de 2019, o Arquivo Nacional foi por diversas vezes chamado a cumprir a decisão de suprimir trechos e inserir documentos ao longo do relatório da Comissão. Como mostram os autos do processo, disponibilizados pelo próprio AN, a instituição tentou cumprir a decisão sem desfigurar o relatório, no intuito de “garantir a integridade e confiabilidade dos documentos sob sua custódia”. No entanto, em 2018, mediante nova intimação e ameaça de multa de R$ 100 mil, o Arquivo cumpriu a sentença.

Além de suprimir um parágrafo inteiro do relatório da Comissão Estadual da Verdade paranaense, o Judiciário determinou que pelo menos 15 documentos fossem insertados em ordem pré-estabelecida no relatório final disponibilizado pelo Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN). A decisão judicial — tomada com base em uma interpretação livre do direito de habeas data — exigiu a inserção de documentos que incluem cópias de reportagens de jornal e até de um livro que desmente um dos depoimentos dados à Comissão.

Um dos pontos mais curiosos da decisão é a preocupação do juiz Friedmann Anderson Wendpap, responsável pelo último despacho do caso, em fazer cumprir a determinação no que diz respeito à inserção de documentos “na estrita ordem como determina a sentença” (p. 54).

Como aponta o despacho, a União conseguiu reverter, pelo menos, a decisão de suprimir partes do relatório. A apelação, no entanto, não foi capaz de deter a decisão pela inserção de documentos no dossiê disponibilizado on-line, uma medida grave, que não apenas fere os preceitos basilares da teoria arquivística, como também atenta contra a legislação vigente.

A adulteração de documentos preservados em caráter permanente — feita com a anuência do Judiciário — representa uma das ações de maior gravidade na história da arquivística brasileira. Produtos de processos já concluídos, documentos como os reunidos pelo relatório final da Comissão Estadual da Verdade do Paraná compõem o patrimônio cultural arquivístico brasileiro e, segundo a lei de arquivos, devem ser preservados em sua integridade por seus valores histórico, probatório e informativo. A inserção de novos documentos no relatório — depois de esgotado o prazo de funcionamento da própria Comissão — representa uma clara tentativa de mudar o conteúdo e o contexto dos resultados obtidos pelas investigações.

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