Como dissera Kuhn (1982), a “tensão essencial” funciona como uma espécie alavanca para as revoluções científicas e surge do embate entre as forças da tradição e da inovação, no seio da “ciência normal”. Nos seus “estudos seletos sobre a tradição e a mudança no âmbito da ciência”, Khun reafirma que as mudanças, enquanto fenómenos, confirmam que as pessoas e as comunidades (científicas, humanas, sociais) não são insensíveis aos enfoques divergentes, diferentes e fraturantes.
Na Era COVID, e provavelmente na Era Pós-COVID, onde também embatem a tradição e a inovação, é – e será – preciso conhecer e atuar em cenários cada vez mais cambiantes. Na opinião de especialistas, alguns dos pontos essenciais à compreensão dessas mudanças, e das suas tensões, fazem parte de uma agenda de trabalho extensa e complexa. Centremo-nos, pois, em alguns dos seus aspetos.
Enquanto fenómeno, a transformação digital – que também impacta os Arquivos e as demais instituições que lidam, no seu dia a dia, com a informação – adquiriu uma maior visibilidade no contexto pandémico. De facto, a pandemia COVID-19 tornou-a em algo obrigatório no cenário de empresas e de outros setores e serviços, entre os quais incluem-se os Arquivos. As diferentes estratégias desencadeadas pelos Governos para decretar os sucessivos confinamentos, desconfinamentos e (re) confinamentos aceleraram a Volatilidade, a Incerteza, a Complexidade e a Ambiguidade próprias dos ambientes econômicos, com reflexos diretos nas suas infraestruturas sociais, políticas e tecnológicas. Num cenário pós-pandémico e já com a lição devidamente aprendida, as organizações inteligentes [a nosso parecer, os Arquivos se encontram nesse rol de instituições] terão de resolver estas questões e investir na melhoria da sua maturidade digital, tornando-se mais flexíveis e menos vulneráveis a novos acontecimentos imprevistos e, no limite, mais competitivas (Fletcher, & Griffiths, 2020). No que respeita aos estilos e formas de organização e execução do trabalho, antes mesmo da pandemia, algumas mudanças já vinham sendo sentidas, como, por exemplo, a rápida disseminação da oferta de serviços tecnológicos, que se tornariam indispensáveisao teletrabalho (e.g. plataformas 5G, serviços em nuvem, ferramentas de videoconferência etc.) (Kodama, 2020). Após a primeira vaga pandémica, em certos momentos, o teletrabalho passaria de tendência a obrigação, o que provavelmente deverá continuar, pelo menos em alguns setores, mesmo depois de a pandemia ceder. Para compreender melhor estas questões e os seus impactos, serão precisas mais pesquisas, capazes de responder aos seguintes desafios: como o trabalho remoto realizado nas organizações poderá desencadear mudanças ao nível das políticas e das culturas organizacionais, a médio e longo prazo? Como serão definidas as novas regras e práticas nos cenários pós-pandémicos? Como o apoio e o bem-estar de colaboradores/a será garantido? Como tornar essa modalidade de trabalho sustentável e fomentar práticas de gestão de informação, à distância, que sejam realmente benéficas e produtivas? (Guyot, & Sawhill, 2020). A nosso parecer, enquanto organizações, os Arquivos podem, e devem, aproveitar o atual contexto e as questões aqui levantadas, para refletirem sobre o seu papel, as dificuldades, os progressos, os desafios e os constrangimentos observados nos diferentes cenários pandémicos provocados pelos sucessivos confinamentos, desconfinamentos e (re) confinamentos, tornando-os em lições e em aprendizagens que sejam benéficas para a qualidade dos diferentes serviços que continuarão a prestar (nas suas diferentes formas de prestação: presencial ou à distância) às suas comunidades de uso.
A par com esses temas, vistos, aparentemente, como mudanças positivas, no plano social são lançados, no entanto, duras críticas e olhares argutos sobre as implicações trazidas pela pandemia, no que respeita ao uso massivo das tecnologias de informação e comunicação, especialmente, no âmbito dos comportamentos informacionais, dos modelos de negócio, da cibersegurança e da privacidade dos dados (Davison, 2020). Num tal sentido, alguns dos temas largamente mencionados têm sido: o controlo e a vigilância tecnológica; as estratégias de big data; a privacidade das informações; a “infodemia”; os ecossistemas de dados; as adaptações aos comportamentos de informação atuais; a reorganização dos locais de trabalho; a manutenção do distanciamento social (Doyle, & Conboy, 2020; Pana, & Zhang, 2020).
No contexto pandémico, a comunicação digital desempenhou – e tem desempenhado – um importante papel no apoio à saúde mental e na manutenção das relações sociais e familiares, sobretudo, nos sucessivos períodos de distanciamento e de isolamento social. Não obstante, também se transformou num campo de batalha para diferentes e perigosas “narrativas”, contribuindo para a disseminação de informações falsas ou desatualizadas. Paralelamente, um dos mais controversos usos atribuídos às tecnologias de informação e comunicação, nesse período, terá sido o de adoção de rastreamento digital e notificação de exposição por meio de smartphones. Mas, se houve defensores/as do uso destas tecnologias para que cidadãos e cidadãs, e autoridades médicas, fossem notificados/as relativamente a possíveis contactos com pessoas infetadas, houve também detratores/as, que propugnaram por um modelo de negócio que privilegiasse a “privacidade em primeiro lugar” (privacy-first) e não os “dados em primeiro lugar” (data-first) (Fahey, & Hino, 2020), instaurando-se assim o dilema (ou a tensão). Na opinião de especialistas, a falta de consenso advinha da falta de confiança no sistema, quanto à capacidade de proteger os dados privados de usos ilícitos e de exposição das pessoas, estando de facto em jogo avultadas oportunidades de negócio, ocultadas sob o pretexto de agir em proveito do bem comum. No inconsciente coletivo, estes progressos foram – a ainda são – vistos com desconfiança, propugnando-se, inclusive, por estratégias de ofuscamento dessas tecnologias, com o fito de evitar que essas recolhas massivas de dados passassem a ser alvo de armazenagens [e de explorações] centralizadas (Fahey, & Hino, 2020). Como é bom de ver, estas estratégias em nada se coadunam com os princípios e as orientações que guiam as tarefas cotidianas levadas a cabo nos Arquivos, enquanto instituições que privilegiam e dão acesso aos conteúdos sob a sua custódia, sem fins lucrativos e para fins académicos, culturais, jurídico-administrativos ou científicos, sem descurar que, em qualquer dos casos, o direito ao acesso não poderá implicar o desrespeito pelo direito à salvaguarda da privacidade da informação, sempre que tal se justifique.
Numa outra vertente, observou-se um crescimento em mais de 60% do uso das plataformas digitais durante primeiro surto pandémico (Holmes, 2020). Quanto mais o distanciamento social e as medidas de confinamento se espalharam, mais as pessoas voltaram-se para as redes sociais. Futuramente, no entanto, serão precisos estudos que nos levem a compreender melhor o papel que a partilha de notícias focadas em estratégias de autodivulgação (ou seja, de informações partilhadas para o bem-próprio ou para a autopromoção social) desempenharam em comparação com as estratégias de heterodivulgação (ou seja, das informações partilhadas para o bem público, para a comunidade) (Nabity-Grovera, Cheungb, & Thatcherc, 2020). Neste último âmbito, indiscutivelmente, afirmaram-se social e comunitariamente – e ainda podem vir a afirmar-se ainda mais – , equipamentos culturais de grande valor, como sejam: arquivos, museus, bibliotecas, entre outros. O estudo do papel desempenhado por estas instituições nesses diferentes contextos será também de grande valia para o autoconhecimento e posicionamento futuro.
Sem prejuízo do que foi dito, o lado mais perverso da questão, que ainda falta compreender com um pouco mais de distância, foi o facto de as redes sociais também terem sido usadas na disseminação da propaganda e do ódio, gerando uma “desinformação” que confundiu e provocou clivagens sociais. Toda essa onda digital disruptiva encontra-se no limiar de uma Era da Pós-verdade, que contamina o meio social, causando danos, alguns dos quais irreparáveis (Bunker, 2020). Estas são – e serão – “doenças paralelas” e erosivas, que precisam ser mais bem conhecidas e combatidas. O desafio que se nos coloca é o de nos tonarmos cada vez mais humanos num mundo cada vez mais digital, exercendo o direito e o dever de informação e de autocontrolo face à informação (Sein, 2020).
A lista do que fazer é, de facto, extensa… e leva-nos a algumas incontornáveis constatações. Muito provavelmente, será preciso investir massivamente em dois tipos fundamentais de literacia: informacional e psicossocial (Iivari, Sharma, & Ventä-Olkkonen, 2020). Isto, porque serão igualmente necessárias melhorias substantivas: i) nas habilidades e nas competências a acionar para integrar essas ferramentas digitais em práticas de Ensino/Aprendizagem frutíferas; ii) numa rede de apoio psicológico (com recurso ao reforço de comportamentos positivos e mitigação de comportamentos negativos); iii) em sentimentos e comportamentos de resiliência, criatividade e perseverança e na confiança – como contrapontos essenciais aos comportamentos nocivos e às resistências à mudança. Como é bom de ver, também neste capítulo, os equipamentos culturais [os Arquivos, naturalmente, aqui também se enquadram] desempenham – e irão desempenhar – um papel fundamental.
Quanto ao futuro da Humanidade, Yuval Noah Harari, na obra “21 lições para o século XXI” (2018), deu-nos pistas importantes. Na última lição, intitulada “Meditação – Observar simplesmente”, Harari convoca-nos ao autoconhecimento e à auto-observação, definindo-os como exercícios que nos levam ao encontro da subjetividade, enquanto dimensão particular do que somos e do que fazemos. O uso desta estratégia é, e será, inevitável para percebermos que, no meio de todas essas tensões – de facto essenciais – existe, tal como previra Kuhn (1982), uma real oportunidade de crescimento. Ou seja, ainda vamos a tempo, ainda podemos encontrar alternativas, porque – enquanto Humanidade – possuímos as ferramentas que nos permitem ultrapassar todas essas dificuldades. Tudo depende – e dependerá – das escolhas que fizermos no presente. |